Ciência e filosofia se unem para tentar explicar o que vemos quando nossos cães dormem. Será que nossos cães sonham?
Quando a minha Docinho era viva, presenciei vários episódios de pernas se mexendo freneticamente enquanto ela dormia, como se estivesse em uma corrida atrás de um bichinho no meio de um campo imenso. Dava para imaginar a cena, tamanho o vigor dos movimentos. Não é difícil imaginar, sabendo o que sabemos sobre os nossos pets, que eles realmente tenham uma mente infinitamente mais complexa do que se sabe. A pergunta é interessante: nossos cães sonham?
Observando nossos cães
O professor Marcos Frank, que estuda funções do sono em animais na Washington State University, viu isso acontecer com seus próprios cães. “Eles estão correndo, gemendo, latindo, e acordam sem saber exatamente onde estão,” disse ele. Eu via a mesma coisa, e percebia que quando ela acordava estava, sim, um pouco desorientada, porém calma, e voltava a dormir quase que imediatamente. Muitas vezes, um pouco aflita antes de fazer o que sempre faço – pesquisar sobre o assunto – acordei a Docinho delicadamente, para tentar avaliar o estado dela após uma atividade tão intensa.
Nem todos os cães apresentam esses comportamentos de sono. Aqui, Docinho e Chico, meu Buldogue Francês mais novo, são os únicos. Antonia e Chérie, não. E são muito diferentes em termos do que se pode observar. Enquanto Docinho corria, Chico mexe as patas em contrações que parecem mais involuntárias, e faz uns barulhinhos com a boca como se estivesse mamando. Mas uma informação muito interessante: dos quatro filhos da Docinho, pelo menos dois faziam a mesma coisa. Isso pode sugerir que a genética tenha participação nas particularidades do funcionamento do cérebro? Talvez…
Cães e o sono REM
Contrações involuntárias dos músculos, chamadas de mioclonia, são comuns em humanos, e também em cães. Isso acontece mais frequentemente durante a fase REM do sono, quando também se observa movimentos rápidos dos olhos (REM significa rapid eye movement, ou movimento rápidos dos olhos) – a Docinho fazia isso. A fase REM é de intensa atividade cerebral, quando sonhamos os sonhos mais vívidos, e os cães tem bastante sono REM. De acordo com um estudo antigo, de 1977, das 24 horas do dia, os cães passam 12% do tempo em sono REM. Ou seja, muitas são as oportunidades de demonstrar esses comportamentos que sugerem que cães sonham.
Para os humanos, o sono REM é o momento de consolidação de memórias, e há evidências de que seja assim também para os animais. Um estudo publicado em 2017 no jornal Scientific Reports descobriu que cães podem utilizar seus cochilos para reforçar memórias adquiridas enquanto acordados. Um novo comando de voz foi ensinado a um grupo de cães. Uma semana depois do treinamento inicial, animais que dormiam depois das sessões de treinamento conseguiam cumprir o comando com mais rapidez e facilidade do que aqueles que foram brincar após o treino. Isso sugere fortemente que o sono teve um papel importante na fixação da memória aprendida. Em resumo: cães que dormem bem aprendem mais! Isso vale para os humanos também…
Ancestralidade e genética
O mesmo é verdade para os ancestrais e primos dos cães. Marc Bekoff, professor de ecologia e biologia evolutiva da University of Colorado, em Boulder, e autor do livro Canine Confidential: Why Dogs Do What They Do, estudou o sono de lobos e coiotes, e detectou os mesmos padrões. Mais uma vez, a genética se apresenta como fator decisivo. Eu amo genética…
O livro explora aquelas coisas que vemos nossos cães fazendo todos os dias, mas que nem sempre compreendemos. Explorando a ciência por trás da cognição e da emoção, Bekoff faz uma viagem pelo comportamento canino, e nos traz dicas de como tornar a vida dos nossos cães melhor e mais saudável do ponto de vista comportamental. Mas isso é assunto para um próximo post…
A filosofia também se interessa pelo assunto
O interesse no sono dos animais não é coisa nova. Há referências a isso em trabalhos de Aristóteles e alguns outros filósofos gregos. Sim, pois a filosofia também se interessa pelo assunto para tentar explicar porque vemos o que vemos no comportamento dos nossos cães, e assim conferimos a eles qualidades cada vez mais “humanas”. Já falei de humanização por aqui, vale conferir.
Por isso, o conhecido filósofo David Peña-Guzmán está lançando o livro When Animals Dream: The Hidden World of Animal Consciousness. Na obra, Guzmán argumenta que a habilidade de sonhar aproxima cada vez mais os animais de seres sencientes, o que nos leva a discussões sobre ética, direitos, respeito e manejo. A mente em estado de sono acaba nos dando dicas valiosas do quanto se passa na cabeça dos animais, e do quanto eles são capazes de processar informações, emoções e sentimentos que só conseguem comunicar aos mais observadores – como nós.
O livro será lançado pela Princeton University Press no mês de junho, e já está na minha lista de compras.
Todas essas informações oriundas de experiências científicas e discussões filosóficas deixam cada vez mais claro aquilo que vai se arraigando mais e mais no nosso dia-a-dia: nossos pets são parte da família, são seres extraordinários e extremamente complexos, que merecem o melhor que tenhamos a oferecer. O melhor não é apenas brinquedos, comidas, experiências, cuidados. É principalmente nossa observação constante de suas necessidades básicas para que sejam física e mentalmente equilibrados, e por consequência mais felizes.